terça-feira, 2 de julho de 2013

Cura gay


"Miss the point": em inglês, a expressão significa falhar em entender a parte importante de alguma coisa. Não sei se existe uma expressão equivalente em português, mas a atual discussão da "cura gay" seria um bom exemplo dessa situação, em que pessoas se dispõem a discutir uma questão que tem solução, mas acabam discutindo um ponto que não é o importante pra chegar lá e apenas criam confusão.

Tudo começa com a Resolução 001/99, do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
           Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.
Em seguida temos o PDL 234/11 do Deputado João Campos, que propõe a sustação do parágrafo único e do artigo 4º da Resolução (coloridos em vermelho acima), ou seja, propõe que eles deixem de ser aplicados, deixem de ter efeito.

A defesa furada de Feliciano e o autoritarismo do Conselho
Nesse vídeo, Marco Feliciano argumenta que é a resolução do CFP que fala em “cura gay” e eles, da comissão, é que estão tirando a cura gay da lei, porque homossexualidade não é doença. Essa é uma das defesas mais ridículas que me lembro de ter visto. Feliciano quer fazer de conta que a mera menção a "cura gay" numa lei significaria algum tipo de preconceito ou endosso a essa prática por parte do CFP — ora, isso é uma asneira completa. Pela lógica capenga do pastor, o vídeo dele no youtube, intitulado "MARCO FELICIANO FALA TUDO DA CURA GAY", também fala "cura gay", então quer dizer que está endossando-a ou sendo preconceituoso?

A resolução fala em cura gay, sim, mas PROIBINDO-A, e não endossando-a. Ao retirar o item que fala em "cura gay" estão tirando a expressão da lei, sim, mas retirando junto a proibição de que ela seja feita. É mais ou menos como revogar algum artigo que VEDA a prática de tortura e falar “nossa, a lei falava em tortura, então como nós não apoiamos tortura, nós que fomos lá e tiramos da lei hehehe”.

Fala-se muito no "Não tem cura porque não é doença", mas a própria Organização Mundial de Saúde define saúde não apenas como a "ausência de doença", mas sim como "a situação de completo bem-estar físico, mental e social.", ou seja, mesmo uma pessoa não-doente ainda pode buscar tratamento para qualquer situação que esteja afetando seu bem-estar bio-psico-social. É por isso que ninguém precisa, por exemplo, estar com obesidade para procurar um nutricionista — e o parágrafo único proíbe justamente que psicólogos participem de "eventos e serviços que proponham TRATAMENTO e cura das homossexualidades".

Se a intenção do Conselho fosse apenas evitar o uso da palavra "cura", então a lei deveria proibir apenas a terminologia "cura" para o tratamento, e NÃO proibir até tratamentos voluntários de homossexualidade.

O truque do Conselho, assim, é colocar tudo no mesmo saco. Qualquer mudança de homossexualidade é tratada histericamente como se significasse achar que homossexualidade é doença. Não é. Algo não precisa ser doença pra poder ser tratado.

Já o parágrafo 4º proíbe até mesmo o psicólogo de "se pronunciar de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica". Se a intenção dos religiosos fosse mesmo apenas manter a possibilidade de tratamento, mas mantendo que "não é doença" e que ninguém pode dizer que é, então eles não deveriam estar tentando sustar o artigo 4º.

O que fica claro é que nenhum dos dois lados toma ações condizentes com o que dizem defender. Isso porque ambos possuem sua própria agenda: de um lado o CFP, fortemente patrocinado pela militância GLBTTT, tentando proibir qualquer opinião relativa à sexualidade que não lhes agrade; do outro, os religiosos, procurando pretextos para negar direitos aos homossexuais.

Mas afinal, apesar das atitudes contraditórias de ambos os lados — que nos dão uma boa dica das motivações tortas deles para o que estão fazendo —, os artigos deveriam ser sustados ou não?

A questão real
A discussão "é doença ou não é, pode falar que é ou não pode, pode chamar de cura ou não" é o missing the point do assunto.

Trata-se ou cura-se aquilo que é POSSÍVEL de ser curado ou tratado, enfim, mudado. Aí sim achamos a questão fundamental: é POSSÍVEL mudar a sexualidade de alguém?

Há quem diga que sim, há quem diga que não. Há quem tenha feito a mudança e diga que não dá certo. Há os que fizeram o hoje se dizem mais felizes. Com que base podemos dizer que não estão ou que é só uma ilusão? Reduzir a sexualidade a "todo mundo nasce assim e tem que morrer assim" ou "a única fonte de insatisfação dessas pessoas é o preconceito" não parece sensato.

Há casos em que a homossexualidade pode sim ser derivada de uma condição puramente biológica — nasceu assim e pronto — sendo talvez impossível de ser mudada, mas em nem todos os casos as pessoas seriam homossexuais “de nascença”. Querer restringir o fenômeno a uma única causa e dizer que ela se aplica a todo mundo, a ponto de proibí-los de sequer tentar mudar, é algo irônico, vindo de quem se diz defensor da diversidade.

A questão central é: só porque há quem ache impossível não se pode com uma resolução proibir os que acham possível de oferecerem tal tratamento a quem queira tentá-lo, ambos agindo voluntariamente. O fato é que o parágrafo único faz justamente isso: proíbe os profissionais que se sintam capazes de fazer tal mudança de oferecê-la a um paciente que queira tentá-la.

Agora, quanto ao artigo 4º, se um psicólogo resolve defender a tese de que homossexualidade é sim uma desordem psíquica, mesmo que ele esteja errado ou que essa opinião fira a sensibilidade de algumas pessoas, qual o problema?

Em geral, as pessoas apontam 2 problemas:
1- "Na prática, se retirarem a proibição, isso vai endossar ou estimular as pessoas e a religião a tentarem curar gays!"
O religioso maluco fundamentalista que acha que homossexualidade é pecado ou doença pela sua crença JÁ tenta curar gays, independentemente do que diga ou deixe de dizer o CFP.

Temos 2 cenários então. No 1º, psicólogos são proibidos de oferecerem tratamento: só vai sobrar ao gay que queira tentar mudar sua sexualidade recorrer a um desses religiosos malucos ou a um psicólogo que fará a coisa clandestinamente (o que geralmente só maus profissionais aceitam fazer), ou se contentar em não ter tratamento nenhum.

No 2º, psicólogos são autorizados: o homossexual passa a ter a chance de lidar com um profissional que poderá orientá-lo de forma responsável, em vez de clandestina.

É óbvio que o cenário em que não há proibição é muito mais benéfico aos próprios homossexuais.

Além do mais, o fato de o tratamento ser permitido não obriga os profissionais a fazê-lo. Aqueles que acham impossível tal mudança de sexualidade poderão continuar não recomendando e não praticando tal tratamento. E um profissional que prometa tratamentos que não consegue cumprir continua sendo passível de ser processado por propaganda enganosa, charlatanismo ou mesmo estelionato.

2- "Eles não podem falar que é doença porque NÃO É!"
Ciência não é (ou não deve ser, pelo menos) uma área em que um grupo elege uma verdade X ou Y e proíbe-se daí em diante as pessoas de se manifestarem contrariamente a ela porque vai "incomodar algum grupo". Ainda mais numa área tão pouco dominada quanto a mente humana.

É sempre complicado reconhecer o direito de as pessoas dizerem coisas que consideramos absurdas, mas tem se mostrado mais complicado ainda quando um grupo reivindica a prerrogativa de determinar — ou "orientar", em nome de um "bem maior" — o que pode ser dito e o que não pode.

Concluindo
Os gays devem ter os mesmos direitos de todo mundo, inclusive de casar e adotar, inclusive o de não serem tratados contra a sua vontade — e o artigo 3º, que proíbe isso, continua valendo (até porque homosssexualidade não é uma condição que retire o discernimento da pessoa). A homossexualidade ser doença ou não em NADA deve afetar esses direitos, justamente porque as pessoas não têm "direitos gays" e sim direitos de humanos.

E eles não têm, assim como ninguém tem, o direito de estabelecer um tabu na ciência que impeça psicólogos de eventualmente darem uma opinião que não lhes agrade, muito menos o de proibir que um outro homossexual recorra a um tratamento que queira voluntariamente a ser dado por um profissional que se sinta apto a dá-lo.

O ponto central, portanto, é se é atribuição estatal proibir (com as mais lindas intenções sempre, claro...) indivíduos de interagirem voluntariamente, ou ainda eleger opiniões que não possam ser manifestadas.



Leitura interessante:
Argumento de Marisa Lobo aos deputados
Nesse texto, a psicóloga Marisa Lobo explica em detalhes as consequências negativas da Resolução, tanto para psicólogos quanto para homossexuais. Notem que ela defende que homossexualidade não seja doença, apenas que há casos em que é possível haver tratamento, e mesmo assim o Conselho Federal de Psicologia tenta cassar a licença dela usando a resolução.

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