Por
mais que se argumente e se mostre as ineficiências da intervenção estatal e a
superioridade econômica do capitalismo, ainda assim as doutrinas do
intervencionismo e do socialismo levam vantagem ao apelar ao senso ético que
existe em cada um. Não porque sejam de fato moralmente superiores, mas porque
são vistas dessa forma. E enquanto o forem, não há índice de pobreza ou cifra
de mortos que mudará a opinião pública.
A
oposição ao capitalismo foi muito bem sucedida em pintá-lo como um sistema
baseado no egoísmo, no qual indivíduos antissociais são induzidos a competir e
agir de forma predatória, numa verdadeira luta de todos contra todos em que os
poderosos ditam as regras e os fracos não têm vez. Homem primata, capitalismo selvagem. No sistema de mercado,
imperaria a "lei da selva" ou "lei do mais forte". Suas alternativas, por outro
lado, projetam a ideia de um mundo mais solidário, fraterno e menos
competitivo, no qual cada um tem sua chance e, mesmo se falhar, encontra algum
amparo.
Para
piorar as coisas, certos defensores
do capitalismo não só aceitam tal descrição como se orgulham dela. O homem,
dizem, é egoísta por natureza e tem mais é que competir; só os fortes
sobrevivem — e o resto, bem... azar
deles. Quero, neste artigo, mostrar como essa visão está completamente
equivocada. A lei do mercado é oposta à lei da selva.
Princípios opostos
Comecemos
com uma descrição da vida sob a lei da selva. Na selva, os recursos são
escassos, e nada é de ninguém. Se quero algo, pego. Se alguém mais quiser a
mesma coisa, brigamos; só um será bem-sucedido. Tudo o que um consegue para si ou
foi tirado de alguém ou privou alguém mais de tê-lo. Desavenças resolvem-se
pela violência; os vencedores ficam com tudo e os perdedores perecem. Uma
árvore deu frutos; quero-os para mim, você também. Lutamos, eu venço, fico com
a árvore e ainda faço churrasco do seu cadáver; game over. Quem é menos
capaz — menos forte ou menos astuto — dança.
Nesse
ambiente, o foco de todos os indivíduos é no consumo. O ambiente é muito
incerto para que alguém se dedique a projetos de longo prazo. Todas as
associações são frágeis. Os indivíduos veem uns aos outros como inimigos,
competidores potenciais. Fora da tribo ou do clã sanguíneo, vive-se em guerra.
Agora
pensemos no mercado. No mercado, os recursos também são escassos, mas cada
coisa tem um dono. A árvore e seus frutos são, por direito, de alguém. Disso
decorre que, se eu quiser um dos frutos, tenho que oferecer algo em troca ao
dono atual. E essa minha oferta tem que ser considerada vantajosa ao dono dos
frutos. Em outras palavras: cada um,
para alcançar seus próprios objetivos, tem que ajudar os demais a alcançar os
seus. Parece injusto com os que não têm propriedade? Mas existem duas
propriedades que todo mundo tem, e que são as mais valiosas de todas: sua mente
e seu corpo, com os quais se trabalha. "Dê-me alguns dos seus abacates que eu
te ajudo a tirar uma pedra da sua caverna". Civilizações nascem assim.
O
foco na selva, como foi dito, é no consumo: comer para viver um dia a mais. No
mercado, embora o objetivo final ainda seja o consumo, o foco é na produção:
trocando uns com os outros, produzimos mais e ficamos todos melhores. Cada um
tem maior quantidade de bens à sua disposição do que teria se não trocasse com
os demais. Se na selva o próximo é um rival no consumo, no mercado ele é um
potencial parceiro na produção. Na selva, o encontro com um desconhecido traz
consigo um impasse ameaçador: "O que posso tirar dele e o que ele pode tirar de
mim?" — duas alternativas excludentes. No mercado, o mesmo encontro levanta
uma outra pergunta: "O que posso fazer por ele e o que ele pode fazer por mim?"
— possibilidades que se concretizam simultaneamente.
Uma
famosa tirinha narra a história
aparentemente real das renas na ilha St. Matthew. As renas, animais
irracionais, viviam sob a lei da selva. Para elas, o campo de líquen era um
vasto campo de consumo; e quem não consumisse, ficaria com menos. Por isso
comeram e se reproduziram desenfreadamente até extinguir sua própria fonte de
sustento. Para os homens, supondo que tivéssemos a mesma dieta das renas, o
campo de líquen, dividido em lotes, representaria oportunidades de produção e
de cultivo. Posso arrasar meu campo em uma semana, consumindo-o completamente,
ou posso restringir um pouco meu consumo presente, trabalhar no campo, e
garantir o sustento duradouro. E quem não tem um campo de líquen, morre de
fome? Não, pois nem só de líquen vive o homem! Todo homem é dono de sua força
de trabalho, e pode prestar serviços a qualquer outro: ajudando a cultivar um
campo, a construir uma casa, transportando mercadorias, fazendo
freelas de
design gráfico etc. Essa divisão das tarefas gera um ganho para a
sociedade como um todo, pois a produtividade de cada trabalhador especializado
é muito maior do que seria se cada um tivesse que fazer um pouco de tudo para
si mesmo.
A
lei do mercado é a lei do benefício mútuo. Para um subir, precisa ajudar outro
a subir. É o exato oposto da lei da selva, em que o ganho de um vem em
detrimento do outro. Como os desejos de todos são harmonizados, torna-se
possível pensar no longo prazo. Na selva, só existe o presente; amanhã alguém
pode roubar a caça que você tanto se esforçou para capturar. No mercado, curto
e longo prazo se equilibram, cada um adiantando ou postergando o consumo de
acordo com seu melhor julgamento.
Analogias insustentáveis
Com
o que foi exposto, vemos como uma das principais relações da selva, a entre
presa e caçador, simplesmente não existe no mercado. A vida do consumidor
melhora ao comprar os bens do produtor; e é por isso mesmo que ele compra. A
vida do empregado está melhor graças à vaga oferecida pelo empregador; e é por
isso que ele aceita o emprego. A vida do empregador, por sua vez, também está
melhor graças aos serviços do empregado. Ninguém é caçador e ninguém é presa nesse
processo; todos cooperam.
Mas
espere um pouco: sempre ouvimos dizer que o traço principal do mercado é a
concorrência. E numa concorrência, um ganha e outro perde, exatamente como
ocorre na concorrência selvagem. Quando uma onça caça uma anta, a onça mais
fraquinha passa fome, morre antes e se reproduz menos. Quando uma empresa lança
um produto de sucesso, outras perdem vendas, demitem funcionários, fecham as
portas etc. É a lei da selva, ou não é?
Todo
mundo sabe que no mercado existe competição acirrada. Ela é uma consequência, e
não um princípio, de sua estrutura organizacional, isto é, do respeito à
propriedade privada que resulta na necessidade de se ajudar os outros para se
ser ajudado (daí o equívoco de se definir o mercado primariamente pela concorrência,
fenômeno que ocorre em todo tipo de ordenamento social e institucional).
A
concorrência de mercado tem a mesma origem da concorrência da selva: a
escassez. A diferença entre elas, contudo, é significativa: na selva,
compete-se pelo consumo dos recursos disponíveis. No mercado, compete-se para
oferecer o melhor ao resto da sociedade. O que é produzido não é o bastante
para satisfazer plenamente a demanda de todos os consumidores (em outras
palavras, as pessoas têm renda e tempo limitados para gastar). Por esse motivo,
os consumidores têm que exercitar certa seletividade em seu consumo: seu
dinheiro e seu tempo vão para aquilo que melhor satisfizer seus desejos. Além
disso, os produtores (e lembrem-se: produtores e consumidores são as mesmas pessoas)
não são oniscientes, e não sabem perfeitamente o que os consumidores querem;
suas escolhas e decisões sempre envolvem uma aposta que pode dar errado.
Os
que melhor se adequarem à demanda dos consumidores receberão destes os recursos
necessários para sustentar sua atividade. Os menos eficientes receberão
recursos insuficientes e precisarão encontrar outro meio de se sustentar; isto
é, procurar outra maneira de servir aos demais.
Nesse
processo de perdas e ganhos, ocorre que uma pessoa, que estava empenhada em
servir às demandas dos demais de um modo específico pode perder os consumidores
que julgava "possuir". É só pensar no ocaso da maioria dos técnicos de vitrola
na virada dos anos 1980 para os 1990, ou dos funcionários de uma fábrica
nacional cuja competição com empresas chinesas tornou obsoleta. Por mais
sofrida que essa transição possa ser, o próprio envolvido, se tiver uma correta
leitura do que se passa, concordará que seu desemprego temporário é benéfico:
"Minha atividade não usa os recursos disponíveis para melhor servir às demais
pessoas. Quero ser remunerado por efetivamente servir e ajudar os outros ou
quero tirar deles meu sustento sem lhes oferecer algo equivalente em troca?".
Esse é o dilema: o dilema entre pautar-se pela lei da cooperação mútua (o que
eventualmente requer sacrifícios) e a tentação de impor a lei da selva, ou
seja, de impor que os outros te sirvam sem lhes oferecer uma contrapartida.
Não
fosse por esse aspecto difícil do processo de mercado (os prejuízos de quem não
se adequa à demanda e portanto obriga mudanças dolorosas de percurso),
estaríamos todos muito mais pobres. Imaginem um mundo em que a remuneração de
cada um não tivesse nada a ver com o quanto essa pessoa contribui para a vida
alheia. O aparente ganho de alguns (que teriam seus empregos garantidos
independentemente da demanda) resultaria na perda de todos, já que a sociedade
estaria globalmente mais pobre: as necessidades humanas não dariam mais a
finalidade à atividade produtiva.
Inclusão natural
A
seleção natural elimina os indivíduos menos aptos. A seleção do mercado,
igualmente não planejada (embora, diferentemente da seleção natural, fruto de
ações humanas), elimina apenas ideias
erradas sobre como servir às demandas dos demais. Embora isso possa trazer algum
sofrimento para os indivíduos que apostaram nessas ideias, ela é, no longo
prazo, boa inclusive para eles: uma sociedade mais rica e com mais
oportunidades de criação de valor é boa para todos e é a única capaz de
sustentar mesmo os que têm menos a contribuir. Do ponto de vista dos indivíduos
no mercado, faz mais sentido falar de inclusão
natural. Um indivíduo bem-sucedido beneficia os demais, ou melhor: seu
sucesso só ocorre porque ele os
beneficia. E embora possa ser difícil competir com ele na exata atividade que
ele desempenha, enquanto houver demandas humanas não atendidas haverá campo
aberto para que mais pessoas trabalhem e ajudem a satisfazê-las (e quando não
houver mais demandas humanas não atendidas também não haverá mais motivo para
trabalhar ou procurar emprego).
São
apenas a afluência e a produtividade que a lei do mercado proporciona que
tornam viável que um indivíduo sustente a si mesmo durante um período de
desemprego, ou que seus parentes e amigos possam sustentá-lo se necessário.
Nesse sentido ,aliás, cumpre notar que, na sociedade de mercado, mesmo aqueles
realmente incapazes de produzir e trocar com os demais (os muito doentes, muito
idosos, seriamente deficientes etc.) podem ser sustentados. Na lei da selva
seriam os primeiros na fila do descarte, sacrificados ao imperativo de
sobrevivência do clã. Hitler estava coberto de razão ao apontar que a sociedade
liberal que ele tanto odiava permitira a sobrevivência de inválidos,
deficientes e "não aptos" em geral; não aptos — é preciso frisar o ponto — à lei da selva; no mundo capitalista
liberal, sua sobrevivência não apresentava problema algum.
O
mercado, assim, é a antisselva. Se na
selva impera a inimizade e a seleção natural, no mercado vigora a cooperação
universal e a criação de oportunidades até mesmo para os menos favorecidos. Na
selva uma pessoa a mais é mais uma boca para alimentar; no mercado, é mais uma
potencial criadora de valor. A selva é o consumo autônomo e voraz dos recursos
escassos; o mercado é o uso dos mesmos recursos para a produção conjunta, e na
qual o recurso mais valioso de todos se faz valer: a inteligência humana. Não
há nada de "selvagem" no capitalismo; e é justamente sua destruição gradual que
pode nos levar de volta à guerra de todos contra todos da lei da selva.
Fonte: mises.org