No dia 27 desse mês foi aprovada por uma Comissão da Câmara dos Deputados uma proposta de lei (PEC99/11) que, segundo alguns sites, "acabaria com o Estado Laico brasileiro". A notícia do Pragmatismo Político, dentre tantas, resume bem a confusão e histeria que estão tentando criar sobre o assunto:
Proposta que enterra o Estado Laico no Brasil pode ser aprovada na Câmara
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) já aprovou permissão para religiosos interferirem nas leis brasileiras
Pra entender a questão, vamos começar do começo:
O que se pode fazer se for aprovada uma lei contrária à nossa Constituição?
Uma das opções é propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ou uma Ação Declaratória de Constitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Ambas são formas de consultar o STF para que ele julgue se uma lei está
de acordo ou não com a nossa Constituição — e se essa lei deve,
portanto, ser mantida ou revogada.
A proposição destas ações pode ser feita:
- pelo Presidente, Governador, Mesas do Senado, da Câmara ou de Assembléia Legislativa;
- pelo Procurador-Geral da República;
- pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB);
- por partido político com representação no Congresso Nacional;
- por confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
A tão temida proposta que passou pela CCJ permite que entidades religiosas também possam propor tais ações — da mesma forma que outros já podem propor. Apenas isso.
Note bem: "Propor", e não "impor" alguma coisa. Ao contrário do que aconteceria numa Teocracia de verdade, em que as religiões impõem o que bem entenderem, aqui as entidades religiosas, assim como todas as demais, simplesmente passarão a poder questionar a constitucionalidade de alguma lei. Para decidir se a lei questionada parmanece ou se deve ser revogada, é o STF que avalia se a tal lei está ou não de acordo com a Constituição (e não "de acordo com a Bíblia ou com os valores da religião X"). Os religiosos podem ser parciais na hora de propor as ações? Sim, assim como todos os outros também podem ser. Isso é irrelevante, porque ainda é o STF, imparcial, quem vai julgar a questão.
Mas e o estado laico?
Esquerdistas e antirreligiosos em geral têm sempre na ponta da língua que "estado laico é aquele em que o Estado fica separado das religiões". Na cabeça deles, isso quer dizer que religiosos não podem participar da vida política com seus valores religiosos — mas ao mesmo tempo os esquerdistas, por exemplo, podem participar com seus próprios valores. Conveniente, não?
Alguns dirão que a questão, na verdade, é "evitar que um grupo imponha seus valores sobre os demais que não compartilham da mesma crença". Ok, muito bem! Mas eu também não acredito em valores esquerdistas como afrouxamento penal e indultos de Natal para presos, e mesmo assim esquerdistas impuseram-me conviver com a insegurança causada por tais leis. Também não acredito em financiar via impostos Estados inchados, mesmo assim tais leis baseadas em valores de esquerda me foram impostas e pago impostos absurdos da mesma forma. (O mesmo vale para as imposições conservadoras contra venda de drogas, contra casamento de pessoas do mesmo sexo, etc...)
Ou seja, o truque é deturpar o conceito de Estado
Laico de uma forma em que só os religiosos são excluídos da participação na vida política, (enquanto outros grupos não são, ainda que façam tantas imposições quanto). Isso não é estado laico, é estado ateu.
A laicidade significa apenas que o estado não pode privilegiar uma religião em detrimento das outras, nem privilegiar as religiões em detrimento dos demais grupos — nem os demais grupos em detrimento das religiões. O que um pode, os outros podem; o que um não pode, os outros não podem.
Se esquerdistas podem criar e propor leis baseadas em seus valores, é perfeitamente laico que religiosos também possam fazê-lo. Se o problema é "um lado impondo seus valores sobre outro", a questão
então é nosso sistema em que 51% podem impor (democraticamente!)
restrições aos direitos dos 49% restantes — a solução contra isso é um
Estado Mínimo, um conceito mais amplo e que engloba o de Estado Laico.
Então, voltando à proposta em que entidades religiosas também poderiam propor as ações de constitucionalidade, a partir do momento em que confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional e a OAB podem propor tais ações, se as religiões não puderem propô-las também então estão tendo menos prerrogativas do que os demais grupos.
No fim das contas, a lei que acusam de criar uma "teocracia" no Brasil é completamente LAICA.
Amém? |